sábado, 29 de maio de 2010

entrevista ao Semanário "Sol"

 
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O padre operário

Por Paula Cardoso

Aos 75 anos foi de Paris a Roma a pé. Com 84 plantou bananeiras nos Camarões. Nas idas e vindas, o padre francês Henri Le Boursicaud recebeu uma medalha do Presidente Jacques Chirac, mais tarde devolvida em sinal de protesto. Tem 86 anos e está de visita a Portugal


Um ano depois da primeira viagem aos Camarões, Henri Le Boursicaud decidiu regressar àquele país africano e morrer na floresta entre os «amigos pigmeus». Por isso, em 2004, percorreu mais de mil quilómetros de mato, desenrascando comida e improvisando abrigo pelo caminho. Só depois percebeu que, afinal, não tinha esgotado o tempo das suas missões pelo mundo.Na mesma floresta onde, com 84 anos, quis esperar a morte, Henri espera agora colher os frutos das bananeiras, cacaueiros e palmeiras que ajudou a plantar nessa viagem. «Mas só em 2009», contou-lhe, por carta um amigo camaronês. Até lá, inquieta-se o francês, «a sobrevivência de um povo com milhares de anos permanece em perigo», ameaçada pela destruição das florestas. Para que «esse crime» não aconteça Henri escreveu Pigmeu entre os Pigmeus, obra que o faz correr, desde Maio, dezenas de paróquias portuguesas. Sobretudo no Porto, onde foi recebido pelo padre e amigo Bernardino Queirós, responsável pela comunidade de acolhimento Tenda do Encontro. Ali, o francês repete a sua fé de vida, no convívio diário com as crianças: «Seguir até ao fim». Mas é ao ventre materno, que Henri vai buscar explicações para a vocação peregrina. «Fui influenciado por um sermão de missionários que a minha mãe ouviu durante a gravidez», acredita o pároco. Por isso faz questão de contar a idade pelos «86 anos e nove meses». Sem esquecer que se lançou numa «missão de amizade entre povos», a partir da «consciência da situação dos emigrantes portugueses» da França de 1966.
Português autodidacta-
«Seis mil pessoas viviam com três torneiras de água, sem luz nem recolha de lixo. Não podia ficar parado», recorda. O cenário precário precipitou a primeira viagem do padre a Portugal ainda nesse ano da década de 60. Chegou com 45 anos decidido a aprender a língua desses emigrantes e, dessa forma, ajudar a melhorar as condições de vida da comunidade lusa em Champigny, nos arredores de Paris. «Rodeei-me de livros das oito da manhã até à meia-noite, durante três meses», conta. No regresso à capital francesa, Henri estreou-se na comunicação em português e no ofício de carpinteiro, indispensável à criação de infra-estruturas básicas ao dia-a-dia dos emigrantes. Mais tarde, não sabe bem quando por desvalorizar «essas coisas», as autoridades francesas baptizaram com o seu nome uma das avenidas da região parisiense. Depois, foi condecorado pelo Presidente gaulês, Jacques Chirac, mas acabaria por devolver a medalha «zangado com os negócios» da sua República.«A resistência iraniana em França», acusa Henri, «é perseguida por causa dos milhões do petróleo» transaccionados em troca da «venda de carros Peugeot» a Teerão. A ‘trama’, que o padre recorda exaltado com os «hipócritas» da política, remete as suas memórias para o Iraque, onde em 2004 fez o primeiro contacto com a resistência iraniana. «Vivi com eles durante dias e sei que não fariam mal a uma mosca. Mas a própria Organização das Nações Unidas (ONU) insiste em chamar-lhes terroristas».Para desfazer «tal mentira», Henri planeia um encontro na ONU, ainda sem data marcada.
Imagem que vale 17 mil dólares-
Foi, de resto, num impulso que, há pouco tempo, chegou à porta do edifício da UNESCO, em Paris, e conseguiu arrancar uma conversa com o vice-presidente. «Como não levava gravata não me queriam deixar entrar. Mas quando mostrei a fotografia que carregava comigo deram-me logo passagem». No retrato, o dirigente daquela organização faz pose ao lado de um prefeito do Brasil, que Henri conheceu numa das suas viagens. O contacto brasileiro valeu-lhe o acesso ao gabinete do vice-presidente da UNESCO e a oportunidade de expor as suas angústias em relação aos milhares de crianças de rua do Congo. «Sei que após a minha passagem estudaram a situação e concordaram em ajudar com 17 mil dólares». Foi mais ou menos essa quantia de 13.300 euros que o francês desembolsou nas plantações de bananeiras, palmeiras e cacaueiros nos Camarões. É um pouco mais do que isso que o padre conta distribuir pelos pobres, depois de concluída a campanha portuguesa. Destinatários não lhe faltam: em quatro décadas de missões, Henri cruzou continentes, entre viagens à Irlanda do Norte, República Checa, Benim ou Bulgária. Ganhou barbas no Haiti – à falta de lâminas e de água – , perdeu quilos nas favelas brasileiras e, aos 75 anos, fez a ligação Paris-Roma a pé, em 97 dias. Quis levar ao Papa João Paulo II o seu protesto contra o afastamento de um colega «demasiado incómodo» para as mentes ‘vaticanizadas’.«O único pecado do bispo Jacques Gaillot foi defender os pobres», revolta-se Henri. «Por isso fui a Roma dizer: ‘Isso não se faz’». Repetiu-o perante as câmaras de televisão e os microfones das rádios, mas não conseguiu fazê-lo diante do Papa, na altura em viagem pelos Estados Unidos. A mensagem seguiu até ao Vaticano por escrito, e é também por papel que lhe chegam, regularmente, notícias das comunidades Emaús que ajudou a fundar «para combater as causas da miséria». Só no Brasil, somam uma dúzia. Em França, Henri chegou a viver seis meses numa dessas ‘irmandades’, convidado pelo precursor do movimento, Abbé (abade) Pierre. Acabaria por sair desencantado «com o amor ao dinheiro de alguns companheiros», fundando, ao lado de um alcoólico, uma comunidade à sua maneira. «Precisaria de pelo menos um dia para descrevê-las». Para expor a sua colecção de experiências, Henri Le Boursicaud calcula precisar de mais de 200 páginas, reunidas na obra "Testemunhar é falar de mim e d’ Ele". «Pronta a sair quando aparecer alguém disposto a publicá-la».
Sobre ele, o padre e amigo Bernardino diz: «Como as árvores, acha-se na obrigação de morrer de pé».
Divino Vagabundo-
A PIDE colocou-lhe o rótulo de padre operário. Houve quem o tivesse chamado falso padre. E a sua vocação missionária rendeu-lhe mesmo a alcunha de vagabundo do bom Deus. Para o pároco Bernardino Queirós, Henri Le Boursicaud é «um aventureiro da esperança», retrato com o qual Francisco Assis, companheiro de rondas paroquiais, concorda.Filho de um humilde camponês, numa família com cinco irmãos, Boursicaud entrou aos 11 anos para o seminário e, aos 26, foi ordenado sacerdote na Congregação dos Missionários Redentoristas, em França. Aos 86 anos define-se como um cidadão do mundo, com raízes bretãs».
paula.cardoso@sol.pt

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